A arte de soltar a voz nos palcos da vida

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Por Alysson Cardinali Neto

Doce, dramática, forte, brilhante... Juvenil, lírica, interpretativa... Traços da personalidade de uma mulher exuberante? Pode até ser (se é que beldade perfeita assim existe), mas a "dama" em questão atende pelo nome de voz. E, acredite, reúne estes e muitos outros atributos, o que nos transforma em seres especiais, diferenciados, independentemente do sexo, da raça ou do credo que tenhamos. É graças à voz que conseguimos nos comunicar e expressar nossas emoções, nossos sentimentos, nossos pensamentos. Uma criação realmente divina, que não só nos diferencia das outras espécies, mas nos molda, nos faz únicos.
Cada pessoa tem uma voz própria e especial. Carrega dentro de si um instrumento particular, vivo, com características fisiológicas e psicológicas singulares. Para cada voz, uma personalidade diferente. Falar é uma arte e, não por mera coincidência, é justamente na arte, especificamente nos palcos da vida, que podemos observar todas as nuances da voz. Sim, ela é primordial no teatro, responsável por incrementar os textos, em uma trama na qual torna-se música vocal, que emana do peito, dos pulmões e do ventre de atores e atrizes para chegar - e encantar - à plateia.

Estudo e aprimoramento: fundamentais
Cal Coimbra, doutora em fonoaudiologia e especialista em voz e linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia, não só lida com a voz, mas a enaltece. "A voz é arte, uma beleza da natureza humana, capaz de transmitir todos os estados de emoção em nuances tão sutis que dão ressonância ao coração dos ouvintes. A voz tem colorido, brilho, tonalidade, energia, intensidade", frisa. Acostumada a trabalhar com atores, atrizes, cantores e todas as pessoas que fazem da voz um instrumento de trabalho (professores, vendedores, repórteres, padres etc), Cal ressalta a importância do estudo e do aprimoramento para quem faz da voz um ganha-pão. Perseverança e disciplina, segundo ela, são os segredos para o sucesso profissional.
"Algumas pessoas nascem com o dom, com o talento, mas existem aquelas que buscam o teatro e o canto pelo desejo, pela aptidão. Bem trabalhados e com disposição, todos podem ter sucesso", avalia a fonoaudióloga, que dá exemplos de artistas que nasceram com o dom para usar a voz. "A voz da Gal Costa é um exemplo de dom, pois tem brilho, colorido, suavidade. A voz da Nana Caymmi tem personalidade, emoção à flor da pele", diz.

Disciplina quase budista
Emoção, aliás, foi o que levou a atriz e cantora Alessandra Verney, 34 anos, a sair de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, para realizar seu sonho profissional, no Rio de Janeiro. Com experiências em musicais - "Tudo é Jazz!" (2004), "Ópera do Malandro, em Concerto (2006) e "7, o musical" -; em comédias - "Aqui se faz, aqui se paga" (2002) -; na televisão - "Chiquinha Gonzaga" (1999) e "América" (2005) - e no cinema - "Apolônio Brasil, o campeão da alegria" (2003) -, a gaúcha alia o amor ao ofício com uma disciplina quase budista. "A voz é minha maior paixão. Por isso, procuro tratá-la com o maior zelo possível. É um grande privilégio tê-la como instrumento de trabalho, e, a partir dela, expressar todos os tipos de sentimentos para, consequentemente, despertar a emoção do outro", revela Alessandra, que faz aula de canto desde os 17 anos, começou a cantar profissionalmente aos 18, e, desde então, dedica-se ao máximo em busca do aprendizado e do aperfeiçoamento.
"Após iniciar as aulas de canto, senti uma mudança significativa em minha voz. Quando comecei a fazer teatro musical, vi que era diferente da forma que eu cantava até então. Por isso, sempre busco me aperfeiçoar e estudar todos os tipos de repertório. Estudar técnica de teatro musical abriu ainda mais meu leque de opções, inclusive no gênero popular. Naturalmente, a voz falada também foi trabalhada junto com a voz cantada. No que diz respeito à parte vocal do teatro musical, meu objetivo maior é fazer com que a voz acompanhe o que o personagem exige. Hoje, quando faço um papel, a primeira coisa que busco é a unicidade da voz falada do personagem com a cantada, que é fundamental. Somando esses fatores à interpretação, eles se interligam e um ajuda ao outro", diz Alessandra.

Um instrumento para as artes
Mas como, afinal, é este estudo e onde aprimorar a voz? Sessões de fonoaudiologia e aulas de canto são bons caminhos. "A fonoaudiologia pode nortear os rumos para a criação de um ator, de uma atriz, de um cantor ou de uma cantora com relação à melhoria da comunicação", observa Cal Coimbra. A atriz, produtora e preparadora vocal Amélia Gumes (trabalha a voz de talentos como Arlete Salles, Daniele Winits e Jonathas Faro, entre outros) faz coro com Cal e enaltece a valorização dos ensaios e a dedicação à carreira. "A voz é importante porque é usada como instrumento para as artes, seja ela falada ou cantada. O texto apresentado com diferentes entoações vocais ou dinâmicas cantadas levam ao expectador diferentes sensações, que contribuem com a riqueza de recursos que podemos utilizar nesse tipo de trabalho", revela Amélia, que tem a receita para quem deseja aprimorar a voz: "Existem várias técnicas de canto, de correção da fala, aquecimentos vocais e relaxamento corporal para liberar tensões. O mais importante, porém, é que atores e cantores tenham o acompanhamento de profissionais da voz para estar em constante aprimoramento e aprendizado, porque cada instrumento funciona de uma maneira diferente. Não existe uma bula igual para todo mundo. Existem linhas de técnica a serem seguidas, mas para cada pessoa, de acordo com suas necessidades e foco, existe uma abordagem diferenciada", explica a professora de canto, que manda um recado aos que se acham donos de disfonias (incorreções na voz) incuráveis: toda e qualquer voz é trabalhável.
"O que, às vezes, pode dificultar esse trabalho é um ouvido ruim, mas isso também se aprende, mesmo que seja um processo um pouco mais demorado. Vozes com patologias sérias por mal uso devem ter acompanhamento de fonoaudiólogo ou otorrinolaringologista para garantir que a patologia seja sanada. O preparador vocal, o professor de canto ou o fonoaudiólogo garantem a correção sonora para que não haja reincidência", garante.

Exercícios são indispensáveis
Exercitar a voz também é parte da rotina de atores e cantores. Foi o que fez Alessandra Verney. Embora nunca tenha feito faculdade de canto, ela recorreu às aulas particulares para aprimorar sua técnica vocal e se aperfeiçoar como cantora e atriz. "Eu estudava canto lírico e também cantava música popular. Mas melhorei muito, também, graças aos excelentes professores que tive, entre eles Vera do Canto e Mello, Mirna Rubim e Eliane Sampaio. De dois anos para cá, estudo com o maestro Marconi Araújo", revela Alessandra, que toma cuidados com a voz mesmo quando não está em cena.
"Antes de entrar no palco, sempre faço aquecimento, mas nada longo demais, pois gosto de ficar concentrada o máximo possível. Bebo muita água. É um cuidado indispensável. Quando estou em cartaz, dificilmente saio após o espetáculo, a fim de descansar vocalmente para o dia seguinte. No meu caso, faz diferença, mesmo tendo uma boa resistência vocal. Uma boa noite de sono também é fundamental para o bem-estar da voz", avisa Alessandra, que não dispensa sessões com fonoaudiólogos.
Fonoaudiólogos, aliás, que têm participação fundamental no aprimoramento vocal de quem deseja soltar a voz, seja nos palcos, nas telas ou na vida. "O trabalho em fonoaudiologia para atores de teatro é, fundamentalmente, o equilíbrio entre voz e emoção. É buscar o controle da voz sem perder a espontaneidade, tentando expandir a sua voz por todo o espaço cênico onde está atuando. O movimento corporal é outro fator de importância para o trabalho cênico. Todo o corpo deve estar em sintonia constante com a palavra que sai da voz e da emoção. Essa harmonia é que facilitará o ator a criar entidades e personagens durante a sua atuação no palco", explica Cal Coimbra, adepta de hábitos que favoreçam a saúde vocal de seus pupilos, como hidratação, aquecimento da voz e relaxamento do aparelho fonador.

Resultado digno de aplausos
O resultado final, após tanta dedicação, geralmente é digno de aplausos. "A voz é primordial no teatro, tão importante que por si só pode incrementar os textos. Mas, em primeiro lugar, é preciso encontrar seus centros de projeção, situados no diafragma, coração e alto da cabeça. Pulsações, ritmos, contrações, gritos, nós de vibrações e de contradições são bases corporais. Tudo isto está implícito na técnica vocal que o ator deve possuir para produzir sentido. O processo de criação de sentido na arte dramática implica que o ator desaprenda as usuais regras que reduzem seu corpo a um simples porta-voz. O objetivo é que a voz do ator torne-se música vocal e dirija-se não apenas à orelha, mas, sim, ao corpo inteiro. Música percebida pela caixa torácica, pelos pulmões e pelo ventre. Quando isso acontece, temos o sucesso", frisa Cal Coimbra.


RESPIRAR É FUNDAMENTAL
Respirar de forma correta é fundamental para o bom uso da voz. A respiração abdominal e intercostal são as melhores amigas dos cantores. Elas dão o apoio muscular que o aparelho respiratório precisa para garantir o melhor som possível e a melhor passagem de ar. Ao inspirar, abrimos as costelas e estufamos um pouco a barriga para fora, e, ao expirar, soltamos o ar e tentamos manter as costelas abertas, mas murchando a barriga para dentro, à medida que o ar sai. Esse é um dos exercícios de respiração mais eficazes. Porém, o ar e sua utilização é a parte mais complexa do canto e é necessário tempo para entender a coluna de ar usada para cantar.

VOZES IDENTIFICADAS
A identificação de uma voz é feita mediante a avaliação perceptiva de três categorias de parâmetros:
• Qualidade vocal - é a percepção que se tem das características qualitativas de uma voz específica
• Emissão vocal - é a percepção que se tem de como um som vocal está sendo produzido
• Expressão vocal - é a percepção que se tem de como a pessoa acrescenta subjetividade ao que é dito

DISFONIAS
As disfonias mais comuns são chamadas de fendas, fendas em ampulheta, irritação nas pregas por conta de refluxo, nódulos e cistos. Apesar dos nomes esquisitos, todas essas disfonias são curáveis, desde que com tratamento adequado (daí a importância de saber qual é o profissional com quem se trabalha pois, caso ele não saiba determinar o tipo de tratamento, pode gerar patologias mais sérias e mais difíceis de serem tratadas). Quem lida com voz tem que aprender sobre o tratamento de disfonias para não cometer erros e acabar destruindo uma voz por imperícia ou falta de conhecimento. Em casos de artistas com disfonia, o tratamento deve ser feito em conjunto com o fonoaudiólogo e com o preparador vocal para que o procedimento seja coeso e tenha sucesso.

Técnicas específicas
Óperas, musicais e peças de teatro. Quando a voz está bem cuidada, bem treinada e bem trabalhada, o dono da voz está no ponto para fazer bonito em qualquer uma destas áreas, certo? Errado. Pelo menos é o que garante Ester Elias, formada em Técnica de Canto Lírico e Popular pela Escola de Música de Brasília e em Fonoaudiologia, pela Universidade Estácio de Sá. Segundo Ester, o trabalho, além de diferenciado para quem atua em óperas, musicais ou peças teatrais, utiliza técnicas específicas, que exigem muito de cada profissional.
"O trabalho do cantor lírico ou da cantora exige mais do trato vocal. Pede mais técnica. A voz é predominante. No musical, tem que haver equilíbrio entre o lado cantor e ator. Ou seja, é preciso que o profissional seja bom cantor e bom ator. No teatro, o uso da voz é somente para a fala e isso requer muito cuidado e uma técnica específica para a voz falada", observa.
Ester recomenda alguns exercícios de respiração para facilitar o uso correto da voz, apesar de serem, ressalta, simples de entender como funcionam, mas complexos na hora de realizá-los. "Basicamente usa-se abdome, diafragma e músculos intercostais para se obter uma respiração básica. Mas é preciso participar de uma aula ou uma terapia vocal para melhor entender e praticar tais exercícios", diz.
São nestas aulas, segundo Ester, que todas as vozes podem ser melhor estudadas e trabalhadas. No mundo das artes há espaço para todas as vozes. "A que não tem como ser trabalhada é aquela que não é naturalmente afinada. Pode estar ligada a alguma resposta auditiva, ou seja, não compreende a nota que ouve e por isso não consegue reproduzir corretamente. Mas isso é especificamente para o canto", revela, acrescentando haver tratamento para solucionar quaisquer problemas vocais.
Para Ester, é possível, inclusive, se chegar à voz perfeita nas artes, o que, garante, não livra o dono da voz de estudo, aperfeiçoamento e orientação profissional. "A voz perfeita é aquela que já nasceu equilibrada em harmônicos e timbres agradáveis de serem ouvidos, mas a orientação de fonoaudiólogos e professores de canto, que tenham bom conhecimento de fisiologia e anatomia da voz, é fundamental", frisa Ester, que considera vozes perfeitas as do cantor Leonardo Neiva e da cantora Julie Andrews.
Quanto aos cuidados para se ter uma voz sempre bonita e saudável, Ester recomenda não fumar e beber, pelo menos, dois litros de água por dia. "A água mantém faringe e cordas vocais hidratadas", avisa. "Não falar fora de sua tecitura ou potência vocal, o que resulta num abuso vocal, também é importante", acrescenta Ester, que recomenda, ainda, comer maçã, "por se tratar de um bom adstringente, que limpa a voz e evita o famoso pigarro".
Já as famosas disfonias, segundo Ester, precisam ser tratadas antes de terem início aulas de canto. "Praticamente toda disfonia pode ser curada. Dependendo do seu grau, deve ser tratada só na terapia de voz, mas, às vezes, chega a ser necessária cirurgia. As mais comuns são por abuso vocal, alergias e até por questões emocionais", alerta Ester, que coleciona participações em importantes musicais como Os Miseráveis, Ópera do Malandro e A Noviça Rebelde, entre outros.

Ficou afônico, mas ganhou experiência
"Quando, por algum motivo, fico rouco ou afônico, sinto-me completamente aleijado". Pode parecer dramático, mas é assim que o cantor de ópera Murilo Neves, 31 anos, se vê quando seu instrumento de trabalho apresenta alguma avaria. "Fico assim porque é através da voz que eu transmito a minha arte", resume Murilo, que, em nove anos de carreira obteve sucesso e premiações, mas colecionou alguns contratempos, como quando, na véspera de uma apresentação, perdeu a voz.
"Fui a um otorrinolaringologista e ele me prescreveu, caso eu não melhorasse a tempo, injeção de cortisona. Acabei tomando-a e, de fato, minha voz voltou. Cantei a primeira parte do espetáculo com segurança, mas, no meio da noite, a voz acabou completamente. Como tinha que prosseguir no palco, acabei falando tudo, em vez de cantar. Aprendi que a gente tem que saber a hora de cancelar uma apresentação", revela Murilo.
O episódio, porém, mais do que fazê-lo ter o timing para cancelar uma apresentação, rendeu-lhe outros ensinamentos em relação aos cuidados com a voz. "É fundamental para o cantor de ópera o estudo constante e o treinamento diário. O cantor de ópera é como um atleta da voz. Se algum músculo perde o treino, a voz se ressente muito", diz o cantor, que faz aulas de canto diariamente e procura estar sempre agasalhado, além de não beber nada muito gelado ou muito quente.
"Mas sem paranoias, pois tenho que dominar minha voz. Acho péssimo me sentir dominado por ela. Observo que meus colegas mais paranóicos normalmente são os primeiros a ficar doentes. Há que se ter cuidados, mas sem histeria. Quem não tem resistência não pode cantar ópera", avalia Murilo, que estuda canto desde os 17 anos e já teve vários professores no Brasil - inclusive uma russa - e na Itália. "Vejo estudantes e professores se contentando com uma aula por semana, às vezes até menos. Isso não basta, não é suficiente. Ninguém aprende a cantar com uma aula por semana. Não largo a minha professora de jeito nenhum", revela Murilo, cuja estreia profissional aconteceu em 2000, na "Ópera dos Três Vinténs".
Desde então, o cantor já se apresentou por todo o Brasil e pôde não só mostrar o seu talento, mas detectar as deficiências de sua área no País. "Nós, brasileiros, temos um idioma que não favorece em nada a emissão para o canto lírico. Sentimos muito mais dificuldade em projetar a voz. A musicalidade e a sensibilidade são essenciais, mas observo que o que falta nos estudantes de canto brasileiros é a técnica mesmo. Existe muita confusão nesse quesito. Existe muito diletantismo. Vejo todos os dias professores inventando coisas, querendo descobrir a pólvora, confundindo muito mais a cabeça dos alunos do que esclarecendo", observa Murilo, que deixa um recado para quem deseja seguir a sua carreira: muito estudo.
"Infelizmente, não se pode comparar a segurança e o apuro técnico dos cantores líricos das décadas de 1950 e 1960 com os de hoje em dia. Numa era em que, mesmo no teatro falado, vemos peças encenadas em salas de 200, 300 lugares, por atores usando microfone, parece muito distante da realidade lutar no gogó com uma orquestra sinfônica completa", acrescenta Murilo, que acabou de voltar do Festival Amazonas de Ópera, onde cantou em três óperas e um recital de música de câmara - também faz trabalhos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e participa regularmente do projeto Ópera no Bolso, da Prefeitura do Rio, onde cantou as óperas "La Cenerentola", "Les Pécheurs de Perles", "Don Pasquale" e "L´Italiana in Londra". Também já se apresentou em São Paulo, em Florianópolis, em Curitiba e em Blumenau.
O talento de Murilo é reconhecido pela professora de canto Amélia Gumes. Segundo ela, o trabalho de quem faz ópera é mais árduo, muscularmente e musicalmente, que todos os outros e exige muito mais tempo de estudo e dedicação. "Hoje em dia já se cobra muito mais a parte ator desses cantores do que antigamente, mas, ainda assim, o grande atrativo são os virtuosismos vocais que se ouve nessas obras. O trabalho em musical é muito direcionado e a música está mais ligada ao que o texto pede. Então todo o trabalho é em cima do ator e se usa a técnica para resolver alguns problemas que só o texto não corrige. Atores tradicionais de teatro puro trabalham a voz falada relacionada ao seu personagem e esse trabalho vem desde a pesquisa do personagem. O que diferencia um do outro é o ponto de partida em que a voz se torna importante e define todo o resto. Simplificando, é como se na ópera se definisse a voz primeiro, nos musicais as músicas definem a voz falada do personagem e no teatro o personagem define a sua própria voz", compara Amélia.

A voz de um expert
Um expert da voz. Assim pode ser definido o carioca Felipe Grinann, 35 anos, dublador, mas que já fez de tudo um pouco sobre o tema. Ator profissional desde 1995 - trabalhou na área teatral com Gabriel Vilela, Paulo de Moraes (Armazém Companhia de Teatro) e Cininha de Paula, entre outros diretores consagrados - e ex-backing vocal, durante dois anos, do cantor Milton Nascimento (no espetáculo Tambores de Minas), Felipe possui vasta experiência, também, na área de locução e dublagem. Ou seja, um currículo que o credencia a falar (aliás, gesto que ele faz até quase à exaustão diariamente) sobre a importância do uso da voz.
"Sou apaixonado pelo que o ser humano é capaz de fazer através da voz. Eu li que muitos monges tibetanos desenvolveram uma técnica para o canto, na qual numeroso grupo emite uma única nota, mas o que se ouve são muitas outras notas. É como se eles entrassem em sintonia com o som do Universo. Isso é fascinante!", diz Felipe, que gosta de exercitar as possibilidades da voz ao máximo, sempre disposto a achar um registro diferente, uma nova forma de falar os textos. "Assim como existem médicos que só cuidam do coração, escolhi me dedicar com mais profundidade à arte do ‘ator-vocal'. A minha maior satisfação é quando ouço alguém dizer: ‘Nossa, nem parece você!'", revela.
Tamanha dedicação levou Felipe a trocar, em 2008, o Rio de Janeiro por São Paulo, onde trabalha como dublador e locutor nas principais empresas paulistanas, além de professor de dublagem da Dubrasil, rotina que o obriga a estar sempre atento e cuidadoso com seu instrumento de trabalho. "Tomo muitos cuidados com a minha voz. Como preciso utilizá-la de uma forma sobre-humana, preciso estar com ela sempre descansada e pronta. Por isso evito tomar gelado, pegar chuva, dormir sem camisa... Tento dormir, no mínimo, sete horas por noite, jamais falo alto em boates ou lugares barulhentos, evito gritar, não fumo, bebo muito pouco álcool e muita água", enumera.
Uma mudança de hábito, porém, em prol da voz, o deixou um pouco triste. "Sempre li que a lactose costuma deixar uma espécie de muco nas cordas vocais e comecei a perceber que, coincidentemente, depois de ingerir os lactos, eu ficava pigarreando muito. Então cortei da minha vida o leite, os queijos e o iogurte. No começo, foi bem sacrificante, pois eu era viciado em comer queijo, mas substituí tudo por soja (que eu também gosto bastante) há quase um ano e a diferença tem sido grande. Hoje, sinto minha voz muito menos suscetível a intempéries, como mudança de clima, resfriados, gripes e alergias. Sinto-me, vocalmente, muito mais resistente", diz Felipe, que participa, desde 2001, de várias campanhas importantes em âmbito nacional (Jornal O Globo, Natura, Sprite, Renault, Embratel, Claro, Becel, Canal Futura, Sony Ericson - durante três anos, foi um dos locutores dos canais da Rede Telecine, através dos programas Cineview e Movie Box).
Dono de um vozeirão - apesar do 1,65 metro de altura - Felipe já deu voz, em português, às falas de Jude Law, Matt Dillon, Tom Cruise e Ewan MacGregor em filmes famosos como Moulin Rouge, Hulk, Madagascar, Tubarão e A Dama e o Vagabundo, mas não consegue escapar de uma situação, no mínimo, inusitada na vida real. "Minha voz é média-grave e condizente com a minha idade (35 anos), mas como eu tenho 1, 65 de altura e cara de 25 anos, toda vez que alguém me ouve em um filme ou apenas conversa comigo por telefone imagina que o dono da voz é um homenzarrão de 1,80, no mínimo! Quando finalmente me encontram, às vezes, nem conseguem esconder a carinha de decepção", brinca Felipe, que, como dublador, trabalhou durante 12 anos em todas as empresas do ramo, no Rio de Janeiro, e como professor de dublagem na Casa e Companhia de Artes Avancini, além de diretor de dublagem na Double Sound.


Conselhos e bom humor
Figura bem-humorada, Felipe Grinann revela que tem como hobby ir às videolocadoras e ficar tentando "se achar"! Ou então, antes de dormir, "zapear" os canais da televisão até se ouvir nos filmes. "Tem dia que eu não durmo enquanto eu não me acho'", diverte-se Felipe, que deixa um recado para quem deseja seguir a sua carreira. "Durante muitos anos, os filmes eram feitos sem mim. Hoje, eles são feitos sem os que ainda não estão no mercado. Ou seja, de certa forma, o mundo sempre roda e sempre funciona sem a gente. Se você quer passar a fazer parte de uma festa que já é divertida sem você, aprenda a se fazer notar. Seja especial. Tenha atitude, educação, profissionalismo, gentileza e, principalmente, uma relação muito íntima com a sua voz. Perceba as suas necessidades, os seus cansaços e a fortaleça para extrair dela até o que você nunca pôde imaginar que seria capaz", diz Felipe, que deixa outra dica para os futuros dubladores.
"Assim como todo senhor(a) de idade tem o seu geriatra e toda mulher tem o seu ginecologista, acho que todo ator deveria ter a sua fonoaudióloga e o seu otorrino. Nosso material de trabalho, a voz, e também as pregas vocais, são elementos que podem se fragilizar facilmente. É importante ter um profissional conceituado que acompanhe você, que conheça os seus pontos fracos, os medicamentos que reagem melhor com você. Assim como é complicado cancelar um espetáculo por motivo de doença, cancelar uma gravação resulta em uma infinidade de prejuízos. É quase como se não pudéssemos ficar doentes", avisa Felipe, que confia plenamente na sua fonoaudióloga (Maria Cecília Periotto).
"Ela sabe ‘quase tudo' de mim, conhece os trabalhos que faço e sabe das minhas necessidades vocais, das minhas dificuldades. Ela montou uma sequência de exercícios de aquecimento, que eu faço todos os dias ao acordar. E a minha otorrino (Cristiane Carla Viana) também já entendeu as urgências e o desgaste que circundam o meu trabalho, a questão dos ambientes sem ventilação e com ar condicionado forte. Essa dupla tem me salvado", garante.

O QUE FAZ O FONOAUDIÓLOGO
• Liberação das tensões desnecessárias ao corpo: relaxamento de pescoço e ombros, associados à respiração profunda, porém suave. Identificar pontos de tensão.
• Suporte respiratório: estimular a respiração nasal, respiração livre e suavizar o fluxo aéreo
• Dicção precisa: leitura de trava-língua
• Ressonância: exercícios de relaxamento de mandíbula, língua e bochechas
• Ritmo, dicção e musicalidade da fala: ajustar os pontos de articulação (pedir ao ator que sinta o seu corpo, se escute e se perceba para detectar possíveis inadequações).
• Projeção vocal: imaginar uma pessoa no início, no meio e no fim da platéia e emitir a voz para que cada uma delas ouça, respectivamente.
• Expressões faciais: tentar demonstrar diversas emoções e sensações em frente a um espelho.
• Sotaques: suavizá-los ou incrementá-los de acordo com o personagem.

CUIDADOS COM A VOZ
Poucas vezes o ditado "mente sã, corpo são" fez tanto sentido. Afinal, para que a voz esteja "afinada", além de cuidados e exercícios específicos com ela, o corpo, como um todo, precisa estar em perfeita harmonia. Uma voz bonita requer um corpo saudável e tudo que se fizer pelo corpo terá efeitos sobre a voz. Alguns cuidados permitem essa combinação perfeita:
• Evitar o frio com suas mudanças de temperatura.
• Praticar ginástica respiratória todas as manhãs. As inspirações e expirações deverão ser feitas pelo nariz, de maneira ampla, lenta, profunda e abdominal.
• Ginástica respiratória
• Banhos frios matinais
• Caminhadas, corridas, bicicleta ou qualquer outro exercício aeróbico.
• Comer com bom senso: pouco, lentamente e mastigando bem. Existe uma importante relação entre o aparelho vocal e os órgãos digestivos.
• Evitar falar ou cantar em ambiente ruidoso. Não competir com barulhos externos
• Evitar falar ou cantar quando estiver resfriado ou rouco.
• Álcool e fumo são proibidos (bebidas alcoólicas congestionam a mucosa laríngea e promovem uma diminuição da energia muscular da mesma). Gelados, quando não estiver utilizando a voz.
• Sono: 8 horas é o recomendável para uma voz descansada.
• Voz cansada ou rouquidão: repouso vocal absoluto.
• O café provoca taquicardia e poderá colocar o cantor nervoso. Pode, também, interferir no ritmo dos movimentos respiratórios.
• Repertório de canto: adequado para seu tipo de voz. Nada pior para o aparelho vocal do que tessituras não adequadas ao seu timbre.
Fonte: ABC da Saúde (texto elaborado pela fonoaudióloga Ângela Guimarães Coelho).

 

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