A arte de soltar a voz nos palcos da vida

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Por Alysson Cardinali Neto

Doce, dramática, forte, brilhante... Juvenil, lírica, interpretativa... Traços da personalidade de uma mulher exuberante? Pode até ser (se é que beldade perfeita assim existe), mas a "dama" em questão atende pelo nome de voz. E, acredite, reúne estes e muitos outros atributos, o que nos transforma em seres especiais, diferenciados, independentemente do sexo, da raça ou do credo que tenhamos. É graças à voz que conseguimos nos comunicar e expressar nossas emoções, nossos sentimentos, nossos pensamentos. Uma criação realmente divina, que não só nos diferencia das outras espécies, mas nos molda, nos faz únicos.
Cada pessoa tem uma voz própria e especial. Carrega dentro de si um instrumento particular, vivo, com características fisiológicas e psicológicas singulares. Para cada voz, uma personalidade diferente. Falar é uma arte e, não por mera coincidência, é justamente na arte, especificamente nos palcos da vida, que podemos observar todas as nuances da voz. Sim, ela é primordial no teatro, responsável por incrementar os textos, em uma trama na qual torna-se música vocal, que emana do peito, dos pulmões e do ventre de atores e atrizes para chegar - e encantar - à plateia.

Estudo e aprimoramento: fundamentais
Cal Coimbra, doutora em fonoaudiologia e especialista em voz e linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia, não só lida com a voz, mas a enaltece. "A voz é arte, uma beleza da natureza humana, capaz de transmitir todos os estados de emoção em nuances tão sutis que dão ressonância ao coração dos ouvintes. A voz tem colorido, brilho, tonalidade, energia, intensidade", frisa. Acostumada a trabalhar com atores, atrizes, cantores e todas as pessoas que fazem da voz um instrumento de trabalho (professores, vendedores, repórteres, padres etc), Cal ressalta a importância do estudo e do aprimoramento para quem faz da voz um ganha-pão. Perseverança e disciplina, segundo ela, são os segredos para o sucesso profissional.
"Algumas pessoas nascem com o dom, com o talento, mas existem aquelas que buscam o teatro e o canto pelo desejo, pela aptidão. Bem trabalhados e com disposição, todos podem ter sucesso", avalia a fonoaudióloga, que dá exemplos de artistas que nasceram com o dom para usar a voz. "A voz da Gal Costa é um exemplo de dom, pois tem brilho, colorido, suavidade. A voz da Nana Caymmi tem personalidade, emoção à flor da pele", diz.

Disciplina quase budista
Emoção, aliás, foi o que levou a atriz e cantora Alessandra Verney, 34 anos, a sair de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, para realizar seu sonho profissional, no Rio de Janeiro. Com experiências em musicais - "Tudo é Jazz!" (2004), "Ópera do Malandro, em Concerto (2006) e "7, o musical" -; em comédias - "Aqui se faz, aqui se paga" (2002) -; na televisão - "Chiquinha Gonzaga" (1999) e "América" (2005) - e no cinema - "Apolônio Brasil, o campeão da alegria" (2003) -, a gaúcha alia o amor ao ofício com uma disciplina quase budista. "A voz é minha maior paixão. Por isso, procuro tratá-la com o maior zelo possível. É um grande privilégio tê-la como instrumento de trabalho, e, a partir dela, expressar todos os tipos de sentimentos para, consequentemente, despertar a emoção do outro", revela Alessandra, que faz aula de canto desde os 17 anos, começou a cantar profissionalmente aos 18, e, desde então, dedica-se ao máximo em busca do aprendizado e do aperfeiçoamento.
"Após iniciar as aulas de canto, senti uma mudança significativa em minha voz. Quando comecei a fazer teatro musical, vi que era diferente da forma que eu cantava até então. Por isso, sempre busco me aperfeiçoar e estudar todos os tipos de repertório. Estudar técnica de teatro musical abriu ainda mais meu leque de opções, inclusive no gênero popular. Naturalmente, a voz falada também foi trabalhada junto com a voz cantada. No que diz respeito à parte vocal do teatro musical, meu objetivo maior é fazer com que a voz acompanhe o que o personagem exige. Hoje, quando faço um papel, a primeira coisa que busco é a unicidade da voz falada do personagem com a cantada, que é fundamental. Somando esses fatores à interpretação, eles se interligam e um ajuda ao outro", diz Alessandra.

Um instrumento para as artes
Mas como, afinal, é este estudo e onde aprimorar a voz? Sessões de fonoaudiologia e aulas de canto são bons caminhos. "A fonoaudiologia pode nortear os rumos para a criação de um ator, de uma atriz, de um cantor ou de uma cantora com relação à melhoria da comunicação", observa Cal Coimbra. A atriz, produtora e preparadora vocal Amélia Gumes (trabalha a voz de talentos como Arlete Salles, Daniele Winits e Jonathas Faro, entre outros) faz coro com Cal e enaltece a valorização dos ensaios e a dedicação à carreira. "A voz é importante porque é usada como instrumento para as artes, seja ela falada ou cantada. O texto apresentado com diferentes entoações vocais ou dinâmicas cantadas levam ao expectador diferentes sensações, que contribuem com a riqueza de recursos que podemos utilizar nesse tipo de trabalho", revela Amélia, que tem a receita para quem deseja aprimorar a voz: "Existem várias técnicas de canto, de correção da fala, aquecimentos vocais e relaxamento corporal para liberar tensões. O mais importante, porém, é que atores e cantores tenham o acompanhamento de profissionais da voz para estar em constante aprimoramento e aprendizado, porque cada instrumento funciona de uma maneira diferente. Não existe uma bula igual para todo mundo. Existem linhas de técnica a serem seguidas, mas para cada pessoa, de acordo com suas necessidades e foco, existe uma abordagem diferenciada", explica a professora de canto, que manda um recado aos que se acham donos de disfonias (incorreções na voz) incuráveis: toda e qualquer voz é trabalhável.
"O que, às vezes, pode dificultar esse trabalho é um ouvido ruim, mas isso também se aprende, mesmo que seja um processo um pouco mais demorado. Vozes com patologias sérias por mal uso devem ter acompanhamento de fonoaudiólogo ou otorrinolaringologista para garantir que a patologia seja sanada. O preparador vocal, o professor de canto ou o fonoaudiólogo garantem a correção sonora para que não haja reincidência", garante.

Exercícios são indispensáveis
Exercitar a voz também é parte da rotina de atores e cantores. Foi o que fez Alessandra Verney. Embora nunca tenha feito faculdade de canto, ela recorreu às aulas particulares para aprimorar sua técnica vocal e se aperfeiçoar como cantora e atriz. "Eu estudava canto lírico e também cantava música popular. Mas melhorei muito, também, graças aos excelentes professores que tive, entre eles Vera do Canto e Mello, Mirna Rubim e Eliane Sampaio. De dois anos para cá, estudo com o maestro Marconi Araújo", revela Alessandra, que toma cuidados com a voz mesmo quando não está em cena.
"Antes de entrar no palco, sempre faço aquecimento, mas nada longo demais, pois gosto de ficar concentrada o máximo possível. Bebo muita água. É um cuidado indispensável. Quando estou em cartaz, dificilmente saio após o espetáculo, a fim de descansar vocalmente para o dia seguinte. No meu caso, faz diferença, mesmo tendo uma boa resistência vocal. Uma boa noite de sono também é fundamental para o bem-estar da voz", avisa Alessandra, que não dispensa sessões com fonoaudiólogos.
Fonoaudiólogos, aliás, que têm participação fundamental no aprimoramento vocal de quem deseja soltar a voz, seja nos palcos, nas telas ou na vida. "O trabalho em fonoaudiologia para atores de teatro é, fundamentalmente, o equilíbrio entre voz e emoção. É buscar o controle da voz sem perder a espontaneidade, tentando expandir a sua voz por todo o espaço cênico onde está atuando. O movimento corporal é outro fator de importância para o trabalho cênico. Todo o corpo deve estar em sintonia constante com a palavra que sai da voz e da emoção. Essa harmonia é que facilitará o ator a criar entidades e personagens durante a sua atuação no palco", explica Cal Coimbra, adepta de hábitos que favoreçam a saúde vocal de seus pupilos, como hidratação, aquecimento da voz e relaxamento do aparelho fonador.

Resultado digno de aplausos
O resultado final, após tanta dedicação, geralmente é digno de aplausos. "A voz é primordial no teatro, tão importante que por si só pode incrementar os textos. Mas, em primeiro lugar, é preciso encontrar seus centros de projeção, situados no diafragma, coração e alto da cabeça. Pulsações, ritmos, contrações, gritos, nós de vibrações e de contradições são bases corporais. Tudo isto está implícito na técnica vocal que o ator deve possuir para produzir sentido. O processo de criação de sentido na arte dramática implica que o ator desaprenda as usuais regras que reduzem seu corpo a um simples porta-voz. O objetivo é que a voz do ator torne-se música vocal e dirija-se não apenas à orelha, mas, sim, ao corpo inteiro. Música percebida pela caixa torácica, pelos pulmões e pelo ventre. Quando isso acontece, temos o sucesso", frisa Cal Coimbra.