Teatro público e sem limites

Por Felipe Sil

Teatro de rua: uma arte encantadora e em crescimento. A Funarte (Fundação Nacional de Artes), em parceria com o Instituto Cultural Sérgio Magnani, mantém abertas até o dia 17 de agosto as inscrições para o edital do Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2009. O objetivo do novo edital é viabilizar projetos de grupos, companhias, trupes e artistas independentes que busquem, em apresentações de rua, um novo significado para o espaço público. Ao todo, são 60 projetos contemplados, com valores de R$ 20 mil, R$ 40 mil ou R$ 50 mil. A iniciativa pode ser encarada como uma amostra real do poder que o teatro de rua ganhou nas últimas décadas não só no Brasil, mas em todo o mundo.


Puderam ser inscritos projetos de montagem ou circulação de espetáculos, performances cênicas e intervenções urbanas. Grupos e artistas com mais de dez anos de atuação na rua também tiveram a possibilidade de concorrer com propostas voltadas para o registro e a preservação memorialística de suas atividades. Os selecionados, no entanto, deverão, obrigatoriamente, executar as ações propostas até dia 30 de abril de 2010, em pelo menos uma cidade brasileira. A análise das propostas cabe a uma comissão composta por cinco especialistas em artes cênicas, que consideram a excelência artística e a viabilidade prática do projeto, a qualificação dos profissionais envolvidos e a diversidade da produção das artes cênicas brasileiras.


O diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Marcelo Bones, diz que o espaço público é fundamental na democratização da cultura. “É um espaço muito importante para ser valorizado no Brasil e que nunca encontra espaço adequado para sua acolhida. Esse é um edital diferente dos outros editais porque apresenta uma proposta para o prêmio. Quer dizer, colocamos como condição fundamental para a inscrição a utilização do espaço público como local de encontro. Queremos premiar a arte que promove a ressignificação do espaço público”, comenta.


O teatro de rua é uma diversão. A plateia pode comer e beber durante o espetáculo, contracenar com os atores e até sair no meio da peça. Por ser realizado em lugares públicos, o teatro de rua permite improvisos e está sujeito a intempéries de todos os tipos imagináveis. Aí, talvez, esteja sua beleza. Ao contrário do que se pode imaginar, esse estilo de encenar não é menos teatro por parecer não ter um planejamento específico. De fato, são séculos e séculos de tradição nessa que é uma das mais antigas manifestações populares.


Os papeis de público e atores sofreram mudanças no teatro de rua em relação ao encenado no edifício teatral. Entre as influências na estética desse tipo de encenação, nota-se a forte presença da exuberância visual do circo tradicional e a habilidade de comunicação de manifestações populares como o maracatu, sobretudo da região de Pernambuco. A ausência do palco, por outro lado, aproxima os lados. As intervenções constantes também são uma característica forte do teatro de rua.


“O teatro de rua está em crescimento em todo o Brasil e não nos surpreendeu a intensa demanda pelo nosso edital. Sabíamos que ia ser assim. É uma arte que chega diretamente ao público e tem a importância de democratizar a cultura. Particularmente, fui diretor do grupo Teatro Andante, em Belo Horizonte, e sei da importância do teatro de rua e como ele funciona. É um tipo de arte que consegue chegar a vários lugares com uma linguagem simples e direta. Sinto uma evolução muito grande desse tipo de teatro. Surgiu há pouco tempo, por exemplo, essa Rede Brasileira de Teatro de Rua, que tem uma pauta bem clara de reivindicações e consegue reunir a classe”, diz Bones.


A rede citada pelo diretor é formada por movimentos de teatro de todo Brasil. Em março de 2008, os articuladores dos Estados da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, do Ceará, do Rio Grande do Norte, de Rondônia, de Minas Gerais, de São Paulo e do Rio de Janeiro instituíram a rede, um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. O objetivo é que todos os artistas e grupos pertencentes a ela possam ser seus articuladores para ampliar suas ações e pensamentos.


“O teatro de rua precisava se fortalecer politicamente e, então, tivemos essa ideia. Os grupos já se conheciam, mas não havia esse contato mais profundo entre os artistas. Começamos, então, a catalogar todos as companhias. É notável o crescimento do teatro de rua em todo o Brasil. Na última contagem que fizemos, só no Rio de Janeiro contabilizamos 96 grupos. Os atores têm percebido que é vantajoso trabalhar nas ruas. Há muito espaço para apresentações e o público costuma ser bem generoso. A plateia não é obrigada a pagar e o meio passa a ser um grande espaço de divulgação de trabalho. Eu mesmo, desde 2002, atuo na companhia Será o Benidito?!, que atua pelas ruas do Rio de Janeiro, e conheço bem as vantagens culturais e financeiras deste tipo de arte”, declara André Garcia Alvez, ator e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.


Sobre o edital da Funarte, o artista faz elogios, mas pede uma amplitude maior do projeto. “Achei a ideia fantástica e eu, inclusive, já mandei alguns projetos meus para a fundação. Só que, na minha opinião, acredito que a proposta seria bem mais interessante se abrangesse não só o teatro de rua, mas todo tipo de manifestação de arte em público como música, pintura etc... Só que a Funarte está de parabéns por estar com esse edital”, comenta.


O teatro de rua é formado por artistas independentes e militantes da cultura, que acrescentam ao público não só quantidade, mas também conteúdo, com o objetivo de fortalecer uma cultura mais democrática no País. Os eventos se espalham nacionalmente e festivais podem ser vistos em proliferação em todos os Estados. Nos lugares menos esperados alguém pode se deparar com um grupo de teatro de rua em ação. Durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no Rio, no meio deste ano, o público se deparou com o consagrado ator Paulo Betti em cena com o espetáculo “Sonho de uma Noite de São João”, baseado em Shakespeare. Em entrevista ao Jornal de Teatro, ele falou sobre a importância de se atuar no asfalto. “É o espaço mais livre e mais difícil de se trabalhar. A pessoa assiste em pé. Quando enche o saco vai embora, toma uma cerveja, fala com o amigo... Eu tenho verdadeira admiração e respeito pelos artistas que trabalham na rua. Em Paraty, parecia que estávamos num autêntico teatro elizabethano. A Igreja de Santa Rita e o casario de Paraty ecoavam uma acústica perfeita para a nossa peça. Foi um gosto trabalhar nesse espetáculo”, comentou.


Um dos grupos de Teatro de Rua mais expressivos do Rio é o Grupo Teatral de Quatro no Ato, que teve sua formação em julho de 1994 com atores formados em conceituados cursos e vindos de importantes montagens. “Somos muito focados para a cultura popular e procuramos levar para as pessoas que estão na rua esse conteúdo tão pouco conhecido. Na rua, além de você ter a oportunidade de levar a arte ao povo, sempre se espera a participação da plateia. Tem muito mais improviso porque a qualquer momento algo pode acontecer. Só que é esse improviso que ajuda a manter o público”, conta o ator Filippe Neri.


Diretor da Companhia sem Máscaras, de São José dos Campos, Valter Vanir Coelho acredita que há preconceito por parte de alguns críticos quanto ao estilo. “Alguns não apreciam o gênero por não quererem ficar no sol ou ter de sentar no chão. Nossa última peça, “Do Alto do seu Encanto”, inclusive, fala de vários preconceitos da sociedade. Quando optamos, há sete anos, por sairmos do palco e irmos para as ruas, sabíamos das dificuldades técnicas que teríamos, mas era justamente a nossa vontade meio Robin Hood de atingir um outro tipo de público menos ligado, talvez, ao teatro que nos fez assumir o desafio. Hoje, pelo menos para mim, essa forma de fazer teatro é bem libertadora”, diz.
Já o ator e coordenador do grupo de Goiânia Teatro que Roda, Dionísio Bombinha, o legal do estilo é poder utilizar qualquer instrumento do cenário urbano para enriquecer a peça. “Utilizamos carros, ônibus, árvores, equipamentos de obra... tudo serve quando se faz teatro de rua. A rua não tem limites como o palco e isso é justamente o que desejávamos quando, em 2003, decidimos formar esta companhia. Achávamos que as paredes limitavam a nossa arte”, explica. Nas ruas, estão todos livres – e sem limites – para criar.


O teatro nas ruas latino-americanas
Na América Latina, pode-se notar, nas ruas das cidades, uma grande diversidade de práticas teatrais que se expressam em um movimento dinâmico e variado. Muito dessa multiplicidade de espetáculos, principalmente no Brasil, deve-se aos processos de criação cujas raízes se relacionam com o período final do regime ditatorial, na chamada etapa de transição democrática dos anos 80. O teatro de rua ainda é visto como uma prática artística que se contrapõe aos discursos autoritários. A ligação desse tipo de arte com manifestações de caráter político e social, aliás, é antiga. No século 20, grupos de artistas revolucionários russos, com a “missão” de divulgar suas ideias sociopolíticas. saíram às ruas após a vitória bolchevique de 1917.


No Brasil, em 1961, um movimento similar, organizado por um grupo de artistas e intelectuais do porte de Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho e Paulo Freire, entre outros, criaram, em Pernambuco, o MCP (Movimento de Cultura Popular).  No mesmo ano surgiria o CPC (Centro Popular de Cultura), da UNE (União Nacional dos Estudantes), no Rio de Janeiro, capitaneado por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha.


O primeiro registro de teatro de rua contemporâneo no Brasil data de 1946, uma iniciativa que envolveu nomes como Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. Nos anos 1970 também há uma efervescência de criações do estilo. Aparece, por exemplo, o Grupo Tá na Rua, de Amir Haddad; e do Ventoforte, de Ilo Krugli, em 1974, também no Rio. O grupo de Ilo Krugli se mudaria, em 1981, para São Paulo. Em 1976, surge o Grupo de Teatro Mambembe, numa iniciativa do Sesc São Paulo, por meio da unidade Consolação, com direção de Carlos Alberto Soffredini.

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